Lívia Caroline Santos Alves


A TEORIA E PRÁTICA NOS PRIMEIROS CURSOS DE HISTÓRIA NO BRASIL



Introdução
Desde o início, os cursos de História no Brasil tiveram uma relação problemática com a formação do professor, isso porque as disciplinas teóricas não tinham uma relação com aquelas que lidavam com a prática. Podemos averiguar essa situação com a criação da USP – Universidade de São Paulo, em 1934, nela, o curso de história foi implementado junto ao de geografia e as disciplinas teóricas eram colocadas no primeiro plano, em detrimento das disciplinas que compunham a prática. Nem na UDF - Universidade do Distrito Federal, criada em 1935, “com o seu modelo integrado de formação de professores, em que formação profissional e conteúdos específicos não eram vistos de forma dissociada”(NASCIMENTO, 2012, p. 269), conseguiu enfrentar o modelo da USP, que influenciou as instituições posteriores e foi chamado de “3+1”, quando nos três primeiros anos os estudantes aprendiam os conteúdos da área teóricas, nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e ganhavam o título de bacharel e, no último, faziam as disciplinas práticas, nos institutos de Educação, ou numa seção especial chamada genericamente por “Didática” e ganhavam o título de licenciado.

No período da USP, os estudantes teriam uma educação desinteressada, sem se preocupar necessariamente com a sua utilidade, a formação do professor. Porém o objetivo do curso, ao longo do tempo, foi mudando, as pessoas que começaram a entrar nele tinham a finalidade de ensinar, mas a relação entre teoria e prática não tiveram sucesso até a LDB de 1996. Diante dessas questões cumpre problematizar: por que a formação de professor teve essa estrutura? Por que segregavam as disciplinas teóricas da prática? Por que as denominadas História do Brasil, História Geral tinham uma importância maior, do que disciplinas da prática, aquelas que eram responsáveis pelo fazer profissional, como a Didática?

Uma explicação pode ser dada por Jörn Rüsen (2006). Ao analisar a didática da história na Alemanha, avaliou que, até o século XVIII, a história foi orientada pelos problemas práticos da vida e um dos seus fundamentos básicos era a necessidade de criar uma consciência em relação ao passado, presente e futuro. Ela considerava importante a Didática de História. Esta tinha a função de proporcionar uma reflexão acerca do ensino e aprendizado da história que estava sendo produzida, de uma forma geral e não apenas as que envolviam o ensino escolar, para que, cada vez mais, a história estivesse afinada na sua utilidade.

“... a escrita da história era orientada pela moral e pelos problemas práticos da vida, e não pelos problemas teóricos ou empíricos da cognição metódica. Mesmo durante o Iluminismo, quando as formas modernas de pesquisa e discurso acadêmicos foram sendo forjadas, historiadores profissionais ainda discutiam os princípios didáticos da escrita histórica como sendo fundamentais para seu trabalho.” (RÜSEN, 2006, p.8)

Porém, a relação da história com a sua didática foi desfeita a partir o século XIX. Nesse momento aquela ganhou o status de ciência e seus princípios básicos de orientar a vida nas estruturas do tempo, foram substituídas pela metodologia da pesquisa histórica.

“A ‘cientifização’ da história acarretou um estreitamento consciente de perspectiva, um limitador dos propósitos e das finalidades da história. A esse respeito, a cientifização da história excluiu da competência da reflexão histórica racional aquelas dimensões do pensamento histórico inseparavelmente combinadas com a vida prática. Desse ponto de vista, pode ser dito que a história científica, apesar de seu clamor racionalista, havia conduzido aquilo que eu gostaria de chamar ‘irracionalização’ da história.” (RÜSEN, 2006, p.9)

Assim, tudo o que dizia respeito a didática foi relegada para o segundo plano e colocada na área da pedagogia, não estando mais dentro dos objetivos dos historiadores.

Ora, se na construção da história enquanto ciência ocorreu a separação da sua produção com a sua utilidade, os cursos de formação de professor foram influenciados por essa dicotomia. Desse modo, faremos uma análise da construção dos primeiros cursos de licenciatura em história no Brasil, a USP, UDF e UDN, para analisar detalhadamente como foram alocadas as disciplinas que correspondiam a prática na formação do professor e como foi sua relação com a teoria.

As experiências iniciais: USP, UDF e UDN
Desde o início do século XX e mais particularmente após a Primeira Guerra (1914-1918), várias reformas sociais começaram a serem feitas pelo Estado brasileiro com o intuito de modernizar o país. Dentre as áreas, estava a Educação. A mudança na sua estrutura era fundamental para dar uma maior organicidade na formação do professor, que, sem cursos específicos para as áreas de atuação no ensino secundário, este era providos por profissionais autodidatas.

Alguns intelectuais que se reuniam em torno do movimento da escola nova também ajudaram nas discussões acerca da docência e começaram a “se preocupar com a formação de professores em nível superior e a criticar o ensino tradicional” (NASCIMENTO, 2012, p. 26-27). Desse modo, vários projetos foram construídos por eles e posteriormente integrados aos documentos do governo, neles, os intelectuais traziam a ideia de uma formação de um professor pesquisador e não só de um disseminador de conhecimento, bem como a importância de técnicas e métodos na preparação profissional.

A questão da preparação para a docência na universidade era colocada em relevo, justamente porque havia no ensino secundário várias pessoas que lecionavam, mas não tinham uma formação específica para o ensino. O surgimento de um ensino superior viria para preparar os profissionais para essa etapa da escola.

Estas reformas educacionais começaram a ganhar mais destaque no cenário brasileiro com a deposição do então Presidente Washigton Luis (1926-1930), na “crise de sucessão, quando Minas Gerais deveria escolher o sucessor do paulista Washington Luís para a presidência da República, como ficara previamente estabelecido com a política café com leite” (SILVA, 2010, p. 32) e a ascensão de Getúlio Vargas, quando promoveu a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública.

No que diz respeito as universidades e por consequência, a criação dos cursos para formação de professor, alguns decretos foram produzidos. O primeiro que gerou resultados posteriores, foi o decreto de Francisco Campos em 1931, primeiro titular do Ministério da Educação e Saúde Pública e que promulgou, em 11 de abril o Estatuto das Universidades Brasileiras, o Decreto nº 19.851 e o “Decreto nº 19.852 que dispunha sobre a organização da Universidade do Rio de Janeiro. Estes decretos tinham por objetivo estabelecer o padrão do ensino superior para o país.” (NASCIMENTO, 2012, p. 37-38). Eles queriam agrupar os institutos que existiam no Rio de Janeiro em uma única unidade administrativa, com formação utilitária e desinteressada. Apontou a Faculdade de Educação Ciências e Letras como um lugar que conjugasse, portanto, esses dois ideais, a de uma formação que levasse em conta a formação do indivíduo e a realização de pesquisas originais.

“Art. 32. Na organização didática e nos métodos pedagógicos adotados nos institutos universitários será atendido, há um só tempo, o duplo objetivo de ministrar ensino eficiente dos conhecimentos humanos adquiridos e de estimular o espírito da investigação original, indispensável ao progresso das ciências.” (BRASILa, 1931 apud Nascimento, 2012, p. 40). (grifos nossos)

Desse modo, a seção de Educação dava habilitação em licenciatura e a de Letras dentre outras habilitações, a de História e Geografia (que ficariam conjugadas em uma única disciplina). Muito embora essa universidade nunca tenha saído do papel, é interessante destacar como o Estatuto e as ideias criadas pelos educadores vão influenciar na criação das outras universidades e seus respectivos cursos, porém fazendo uso da determinação da parte utilitária e desinteressada, de acordo com seus interesses.

Isso aconteceu com a primeira experiência, a USP. Criada de maneira independente pelo governo de São Paulo, em 1934, após a revolução constitucionalista de 1930, embora tivesse o pressuposto de formar professores, usufruiu naquele momento como um dos principais objetivos “a formação intelectual das elites políticas paulistas.” (NASCIMENTO, 2013, p.268), que desejavam recuperar a hegemonia política tirada por Vargas e por isso, não tinham o interesse imediato de preencher o mercado de trabalho. Foi criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e colocaram numa única habilitação História e Geografia. Os conteúdos teóricos não tinham relação com os práticos. Estes eram colocados no último ano, reproduzindo o modelo “3+1”.

Outra experiência foi com a UDF, em 1935, no Rio de Janeiro e que seguiu inicialmente um modelo diferente do primeiro, inspirados nos ideais da Escola Nova. Tendo a frente Anísio Teixeira, o prefeito do Rio de Janeiro Pedro Ernesto Batista queria representar “a defesa de um sistema escolar público, gratuito, obrigatório e leigo” (FERREIRA, 1999, p. 279 ), e tinham (inicialmente) uma maior preocupação em relação ao magistério, “o projeto privilegiava a formação de professores, sem, no entanto, apartá-la das atividades de pesquisa como fio condutor do ensino [...]” (NASCIMENTO, 2012, p. 46), tinha o ideal de construir não apenas técnicos e professores e conservar o saber, mas produzir conhecimento. Os cursos de história tinham autonomia, eram desvinculados do de Geografia e a parte específica que formava o bacharelado, tinham uma relação com a da Didática, portanto, iam mais de encontro com o Estatuto das Universidades, do que a USP.

Porém, além da mudança do currículo promovidos por intelectuais franceses, que veremos mais adiante, houve uma eclosão da revolta comunista nesse período e resultou em afastamentos de vários professores. Outros assumiram, mas com o clima de uma “polarização política entre forças de esquerda e direta no Brasil, acabou por levar Getúlio Vargas a dar um golpe de Estado que garantiu sua permanência no poder, agora como ditador” (FERREIRA, 1999, p. 271) e consequentemente, Gustavo Capanema (1934-1945), ministro da educação, extinguiu a UDF e integrou os seus quadros para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil em 1939, a UDN.

O decreto que viabilizou sua construção e a extinção da UDF apontava a necessidade da relação entre a pesquisa e ensino, como apontava o Estatuto das Universidades Brasileiras:

“Art. 1º A Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras, instituída pela Lei n. 452, de 5 de julho de 1937, passa a denominar-se Faculdade Nacional de Filosofia. Serão as seguintes as suas finalidades:
                a) preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades de ordem desinteressada ou técnica;
                b) preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal;
                c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituam objeto de ensino.” (Decreto-Lei n º 1.190, de 4 de Abril de 1939).

Porém, a UDN - Universidade do Brasil, em 1939, acabou por seguir o mesmo modelo de ensino, o “3+1”. Nesta instituição, os conteúdos históricos e geográficos foram ofertados nos três primeiros anos na Faculdade Nacional de Filosofia (FNIFi), eles seriam dados na Seção de Ciências e entregava ao estudante o título de bacharel, caso este quisesse, o de licenciatura, cumpria mais um ano com disciplinas relativas a prática na Seção Especial de Didática, no qual o aluno recebia uma formação pedagógica paro o ensino secundário, separada da sua área. Cabe ressaltar que começou a existir nesse período, um número mínimo de disciplinas que já iam prontas para os cursos, conhecido como “currículo mínimo”.

Quadro 1 – Currículo Mínimo do curso de História da
Faculdade Nacional de Filosofia (Universidade do Brasil)
            1º ano
          2º ano
            3º ano
4º ano
Geografia Física
Geografia
Física
Geografia
do Brasil
Didática
geral
Geografia
Humana
Geografia
Humana
História
Contemporânea
Didática
especial
Antropologia
História
Moderna
História
do Brasil
Psicologia
educacional
História da
Antiguidade e
da Idade Média
História
do Brasil
História
da América
Administração
escolar

Etnografia
Etnografia
do Brasil
Fundamentos Biológicos
da Educação



Fundamentos
Sociológicos da Educação
FONTE: (NASCIMENTO, 2013, p. 272)

É interessante mostrar mais detalhadamente as disciplinas dessa instituição, pois ela se tornou o modelo curricular nacional e disseminou o conhecido “3+1”, já iniciado pela USP e juntou novamente a habilitação de história com geografia.

Um parêntese deve ser feito em relação as três instituições – USP, UDF e UDN e que dialoga com as discussões feitas início deste trabalho, por Jörn Rüsen (2006). Todas essas três universidades tiveram ajuda dos franceses que desde o início do século XX (FERREIRA, 1999), vinham fazendo missões culturais no Brasil, mas que a partir da década de 30 deste século, participaram ativamente da estruturação dos cursos de história. Partindo também dos interesses dos brasileiros, os franceses tiveram uma influência importante no momento fundamental de mudanças educacionais, como na construção dos currículos e na execução das aulas.

Alguns dos franceses, por terem relação de influência e trânsito entre as autoridades, o campo intelectual e acadêmico franceses, foram arregimentaram alguns professores de história para atuar no Brasil. Dois aliados e que tiveram papel fundamental foram George Dumas, que era professor da Sorbonne pela USP e Henri Hauser, também professor da Sorbonne, para as instituições do Rio de Janeiro. Porém, “O historiador mais importante a integrar as missões universitárias francesas nos anos 1930 foi Henri Hauser” (FERREIRA, 1999, p. 286), por ocupar lugar de destaque na estrutura acadêmica francesa e por indicar muitos dos nomes que compôs o quadro de profissionais, inclusive os da USP, como o de Fernand Braudel, bem como organização dos cursos. No contexto da UDF,

“[Ele] centrou-se não só em organizar a cadeira de história moderna, mas também de fazer propostas para a montagem do curso como um todo. A atuação de Hauser fez-se sentir especialmente na valorização das cadeias de conteúdo histórico em detrimento das disciplinas de formação pedagógica. A cadeira de história moderna sofreu então uma duplicação de sua carga honorária passando de três para seis horas semanais. A influência de Hauser - marcante na estruturação curricular e na difusão de uma nova concepção de história econômica e social - estava conectada com os movimentos de renovação da disciplina na França.” (FERREIRA, 1999, p. 288)

Ele desenvolveu sua carreira no momento de afirmação da História enquanto ciência e a exaltação do historiador na França, “período 1870–1914 [que] é considerado como a Idade de Ouro da profissionalização da história na França” (FERREIRA, 1999, p. 286) e influenciou o modo como estava sendo organizados os cursos na UDF e USP. As disciplinas pedagógicas da UDF, que tinham relação com todo o currículo inicialmente, por não ser valorizada em relação as cadeiras de conteúdo histórico foram, em 1937 postas com carga horária reduzida e aumentaram a “carga horária de disciplinas de conteúdo” (NASCIMENTO, 2013, p. 270).

Considerações Finais
Desse modo, por mais que tenham existido um debate no meio dos intelectuais brasileiros e inicialmente, alguns esforços federais na criação de uma organicidade nas universidades, aliando o ensino e pesquisa, teoria e prática e frisando a necessidade de um professor qualificado para ensinar, o modelo que venceu foi aquele que corresponde a uma história científica que se distancia de uma das suas utilidades, a preparação para a sala de aula, vinda da tradição científica do século XIX e privilegiando uma pesquisa histórica desinteressada.

Jörn Rüsen (2006) afirma que esse quadro começou a mudar na Alemanha, nos anos 60 e 70 do século XX, quando os estudos históricos deixaram de ser legitimados pela sua própria existência e precisaram de reflexões mais amplas sobre os seus fundamentos, sua interrelação com a vida prática e com a educação, a partir de uma crise de legitimidade pela qual passou. A visão sobre ela, dessa forma, foi transformada. De limitadora, passou a ter relação com o próprio trabalho dos historiadores.

No Brasil, a mudança entre a teoria e prática começou a ser efetivada com a criação da LDB de 1996, quando trouxe no seu documento a importância de relacionar o estágio supervisionado e prática de ensino aos conteúdos teóricos. A prática de ensino teve o objetivo de ajudar o futuro professor a vivenciar outras experiências, que não a sala de aula propriamente dita e relacionar com todo as disciplinas do currículo.


REFERÊNCIAS:
Lívia Caroline Santos Alves é mestranda em História Social pela UFBA, apoio Capes.       

BRASIL, Decreto-Lei n º 1.190, de 4 de Abril de 1939. Diário Oficial da União - Seção 1 - 6/4/1939, Página 7929 (Publicação Original). Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1190-4-abril-1939-349241-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 11 de nov. de 2018.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun., 2000.
NASCIMENTO, Thiago Rodrigues. A formação do professor de História no Brasil: percurso histórico e periodização. Revista História Hoje, v. 2, p. 265, 2013.
______. Licenciatura curta em Estudos Sociais no Brasil: sua trajetória na Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ (1973-1987). 236 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). São Gonçalo (RJ), 2012.
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa. Ponta Grossa, PR. v. 1, n. 2, p. 07–16, jul./ dez. 2006.
SILVA, Vanessa Magalhães da. No embalo das redes: cultura, intelectualidade, política e sociabilidades na Bahia (1941-1950). 256 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2010. Salvador, 2010.



3 comentários:

  1. Ótimo debate, parabéns. Em recente pesquisa com professores do ensino fundamental e médio no Paraná, constatamos as mesmas questões e uma fortíssima valorização das práticas de ensino. Na Sua opinião como podemos integrar os níveis de ensino?

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  2. Olá, Everton. Muito obrigada! Penso que uma das soluções para integrar os níveis de ensino seja justamente compreender a utilidade do ensino de história dentro dos cursos. Sendo assim, valorizaríamos as outras finalidades da história, como o ensino nas escolas básicas e não só a produção histórica.

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