Carolina Corbellini Rovaris


HISTÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA: UM PROCESSO CONTÍNUO DE TRANSFORMAÇÃO


Tornei-me professora de História quando pela primeira vez pisei em sala de aula com esta função. Não havia me acostumado a ser chamada por este tratamento. Foi uma surpresa quando percebi que meus alunos já me viam como professora, apesar de eu ainda não me ver a partir desta identidade. Porém, ser professor não é um processo que tem um fim: constantemente nos transformarmos em professores.

Este breve relato se justifica porque a maneira de me relacionar com o meu eu professora parte da forma como eu vejo o ensino de história e a formação dos professores de história, tema que se desenrolará neste ensaio, a partir das leituras e discussões realizadas no Mestrado Profissional em História. Ambos estão imbricados pois atuam dialogicamente um na construção do outro.

A formação do professor de história é um processo contínuo que tem lugar tanto no espaço pessoal como profissional do sujeito. É importante considerarmos como o tempo e os diversos espaços socioeducativos formam o professor. Contudo, como afirma Selva Fonseca (2003), é na formação inicial nos cursos de graduação que os saberes históricos e pedagógicos são colocados como ponto central de debate e problematização. Este é o momento inicial do processo de formação da identidade profissional do professor, visto que, geralmente, será a primeira vez que ele refletirá sobre o seu modo ser e estar na profissão.

A própria disciplina de História surgiu no século XIX como uma necessidade de formar profissionais aptos a ensinar uma história nacional, que formasse o cidadão (PROST, 2008). Daí porque a constituição do ensino de história e a formação de professores estão intimamente relacionadas.

Muito se discute sobre a distância entre as práticas e saberes históricos que são produzidos e mobilizados na universidade e aquilo que está presente nas escolas. Pois se a formação inicial do professor é fundamental, o que acontece quando ele se forma e passa a atuar na escola? E aqui se instala outro debate presente nos cursos de graduação: ser historiador ou professor de História?

Fonseca (2003) defende que o exercício da docência abarca um conjunto de habilidades que possibilita trabalhar com saberes e valores por meio de processos educativos desenvolvidos no interior do sistema de educação escolar. Mas, no caso específico da disciplina, o saber docente consiste também no domínio do conhecimento historiográfico, fazendo com que o professor de História seja ao mesmo tempo um historiador. Não deveria haver dicotomia entre estas duas identidades profissionais, pois elas se complementam.

O documento das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos Superiores de História apresenta um silêncio no que diz respeito ao papel destes cursos na formação do professor; a ênfase recai na formação do pesquisador. A autora, então, questiona: por que não ser historiador e professor? Por que a dicotomia entre ensino e pesquisa? Selva Fonseca (2003) ainda faz uma crítica à formação aplicacionista presente no documento: os saberes pedagógicos aparecem como complementares, para cumprir uma função de instrumentação, ao invés de emergirem como parte fundamental da formação do pesquisador-professor.

Podemos atribuir este fator à maneira como a formação do professor foi se constituindo na história recente do Brasil. Segundo Marcelo Magalhães (2006) foi somente com a transição do período de Ditadura Militar para a democracia que o professor deixou de ser visto apenas como um transmissor de conhecimento e passou a atuar como coautor no processo de ensino-aprendizagem. Isto significa que pensar a formação do professor como um pesquisador é relativamente recente e refletir sobre o seu processo de transformação também, desde o curso de graduação até a formação continuada, uma vez que o tornar-se professor nunca é um processo acabado. Além disto, Selva Guimarães (2003) ainda aponta como é necessário formar permanentemente o professor, ao mesmo tempo fazendo com que este processo também reverbere em mudanças concretas no sistema educacional brasileiro. Na constituição da História como uma disciplina escolar podemos ver este processo: os objetivos e finalidades da disciplina dentro do espaço escolar foram se transformando ao longo do tempo e com isto a formação e o papel do professor em sala de aula.

A História tornou-se disciplina escolar no Brasil após a independência, momento em que se buscou estruturar um sistema de ensino para o Império, com objetivos definidos e métodos pedagógicos próprios. O objetivo principal da disciplina era a formação do cidadão produtivo e obediente as leis, controlado pelo Estado por meio da educação nacional. Evidentemente que este ensino era voltado principalmente para formar as elites dirigentes do país.

Circe Bittencourt (2007) nos explica que a construção da identidade nacional esteve sempre relacionada a constituição de um sentimento nacionalista e uma concepção específica de povo. Thaís Fonseca (2011) complementa que desde o século XIX até a década de 1930, as elites passaram a refletir sobre a construção da nação, que deveria levar em conta a mestiçagem, considerada então como um problema, pois envolvia aqueles indivíduos indesejados: os afro-brasileiros e indígenas.

Neste sentido, a escolha das elites no poder, provenientes do setor agrário e escravagista, foi a construção de um nacionalismo que se identificava com o mundo cristão e branco europeu, seguindo o modelo francês de escolarização e implicando na formação de uma consciência nacional repleta de estereotipias e exclusões sociais (BITTENCOURT, 2007).
Desta forma, as populações indígenas, por exemplo, apesar de representarem o símbolo da nação, principalmente com a emergência do romantismo, foram apagadas do ensino de História. Bittencourt (2007) afirma que tais populações apareciam somente no estudo da fase inicial da colonização e depois de maneira pontual quando se tratava de lutas e/ou confrontos na história do Brasil. Podemos ainda nos questionar o quanto desta construção do passado acerca desta população ainda permanece no ensino de História hoje e também na formação dos professores de História.
Nas décadas de 1930 e 40 o governo promoveu uma série de reformas para elaborar políticas educacionais. O ensino de História foi consolidado, então, como disciplina escolar dentro de uma proposta de formação da unidade nacional. A partir desse momento, programas curriculares foram estruturados, com definição de conteúdos, indicação de prioridades, orientação quanto aos procedimentos didáticos e indicação de livros e de manuais (FONSECA, 2011). Houve também a criação do Ministério da Educação e da Saúde, como eixo responsável pela definição de programas educacionais, implicando na retirada da autonomia das escolas no que diz respeito à elaboração de seu próprio programa.

Esta reforma também definiu a História do Brasil e da América como centro do ensino. No entanto, ela aparecia como componente da História da Civilização, tornando seu espaço reduzido dentre todo o conjunto de conteúdo a ser ensinado. Segundo explica Bittencourt (2007, p. 39):

 “o ideário imperialista dos países europeus expressava-se na configuração de uma história profana que transformou a história universal em história da civilização. Civilização passou a ser o novo conceito para designar progresso, separando e identificando os povos cada vez mais em civilizados ou atrasados”.

Somente com a Reforma Gustavo Capanema em 1942, a História do Brasil foi transformada em disciplina autônoma e consolidou como seu objetivo fundamental a formação moral e patriótica (FONSECA, 2011). Para consolidar o papel do estado-nação neste processo, os principais personagens desta história foram os chefes republicanos, construtores da pátria; reforçando a formação política do cidadão brasileiro sob um viés único e homogeneizante.

O ensino de História no Brasil, então, apresenta as disputas e confrontos entre grupos que apresentavam projetos diversos para a nação. A História da Civilização explicava, por exemplo, o porquê da dominação pelo racismo diante da superioridade do branco. É relevante mencionar que, neste contexto, a historiografia brasileira também confirmava este ideal, no qual o estágio de civilização do povo brasileiro estava em risco por conta da mestiçagem.

Durante o período da Ditadura Militar, esta concepção de formação do cidadão foi aprofundada, agora com restrição à formação e à atuação dos professores a partir da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, visando eliminar qualquer tentativa de resistência ao regime então estabelecido. O ensino de História, neste momento, tinha como objetivo formar cidadãos não críticos, mas conformados com a sociedade hierarquizada que já estava colocada. Thaís Fonseca afirma que “a História aparecia como uma sucessão linear de fatos considerados significativos, predominantemente de caráter político-institucional, e no qual sobressaíam os espíritos positivos que conduziriam a História. ” (2011, p. 58). 

Tal concepção de ensino de História criou o sentimento de um nacionalismo ufanista, conforme aponta Bittencourt (2007), no qual as diferenças e conflitos presentes na sociedade brasileira foram naturalizados. Os estudos sociais propostos eram uma junção reduzida de história e geografia, sem profundidade teórica e conceitual, somente o suficiente para que o aluno se adaptasse à comunidade brasileira e ao sistema. Ensinar se tornou reproduzir conhecimento e a didática se apresentava como uma instrumentalização das técnicas do professor para transmitir este conhecimento.
        
No final da década de 1970, com o processo de redemocratização, foi necessário repensar o ensino de História, agora com projetos educacionais que refletissem sobre o processo de construção da democracia no Brasil. Diferente do não questionamento colocado pelo regime militar, propunha-se um ensino de História crítico, que reconhecesse e problematizasse as desigualdades e conflitos presentes na sociedade brasileira. Além disto, o estudante deveria desenvolver o domínio de algumas habilidades próprias do método historiográfico, como a análise de fatos e suas diferentes interpretações e o estudo de conceitos fundamentais para compreender a sociedade.
        
A historiografia brasileira também passava por um momento de revisitar obras consideradas clássicas e fazer novos questionamentos às mesmas fontes. Bittencourt (2007) aponta como um exemplo, a preocupação das reformulações curriculares na década 1980 em enfrentar problemas como o racismo, até então visto e analisado sob a ótica de um país da democracia racial. Os movimentos sociais organizados tiveram um papel fundamental na construção de uma pauta democrática para o futuro do país.  A qualidade do ensino de História, então, passou a estar relacionada à capacidade desta disciplina em levar para a escola as discussões historiográficas mais recentes.

A educação para a diversidade teve, e ainda tem, lugar fundamental nas discussões das organizações dos movimentos negros. Ela representa, nas palavras de Mariana Heck Silva (2017), um espaço de luta política e de empoderamento dos sujeitos, portanto de emancipação social e cultural. Além da inclusão de conteúdos no currículo, a expectativa é romper com o racismo institucional e modificar o sistema então estabelecido, eurocêntrico e branco. Destacam-se duas demandas sempre colocadas em pauta nesta área: a escolarização de homens e mulheres negros e a inserção das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras no ensino.

Em relação a esta segunda demanda, se trata de uma reivindicação antiga: a partir da década de 1970, o movimento negro passou a denunciar o espaço escolar como excludente e a invisibilidade da experiência de africanos, africanas e seus descendentes na história do Brasil (SILVA, 2017). Assim, desde então, o movimento buscou formas de institucionalizar o ensino da temática por meio de projetos de lei. Conforme explica Willian Lucindo (2014), o primeiro projeto a ser apresentado com tais características foi elaborado pelo deputado federal Abdias do Nascimento , no ano de 1983. Neste, seu autor propunha a criação de mecanismos de compensação à discriminação racial, incluindo política de cotas para homens e mulheres negros no serviço público e a incorporação do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos livros didáticos, educação básica e universidades. Apesar de aprovado, o projeto foi arquivado no ano de 1989, como pontua Mariana Heck Silva (2017). Para Willian Lucindo (2014), isto se justifica porque o projeto negava contundentemente a existência da democracia racial no Brasil, que mantinha a hierarquia e privilégios da branquitude, silenciando por sua vez o debate sobre o racismo estruturante da sociedade brasileira.

Todavia, a luta contra o racismo institucional posto não acabou: senadores e deputados do movimento negro continuaram a propor projetos sobre a temática, tomando como base aquele escrito por Abdias do Nascimento. Uma proposta apresentada no ano de 1995, pela senadora Benedita da Silva não foi aprovado e acabou sendo arquivado. No mesmo ano, Humberto Costa apresentou outro projeto de lei que, apesar de arquivado, foi reapresentado por Ben-Hur Ferreira e Esther Grossi em 1999. Este projeto de lei, de número 259, tinha como foco a área da educação tornando obrigatório o ensino das relações étnico-raciais, História da África e da cultura afro-brasileira (SILVA, 2017).
        
Diante deste breve histórico, podemos observar como o ensino de história e a formação do professor de história sempre esteve relacionado com a formação de um cidadão a partir de uma identidade nacional. Se no primeiro momento o cidadão seria aquele súdito fiel à monarquia, hoje a cidadania aparece como um valor de um sujeito participativo e consciente da sua agência na história e da sua responsabilidade perante a sociedade na qual vive. De uma identidade nacional homogênea e monolítica, passamos a identidades plurais e multifacetadas, que ressignificaram o conceito de cidadania, identidade e ensino de História no Brasil.
        
Retornamos, então, ao breve relato que fiz no início deste ensaio. O tornar-se professora de história é um processo contínuo que demanda reflexão e análise crítica da prática, do momento em que vivemos e do local de onde falamos e estamos presentes. Assim como a historiografia se renova a partir de novos questionamentos, o ensino e o professor de história acompanham este movimento.

REFERÊNCIAS
Carolina Corbellini Rovaris é professora da Educação Básica em Lages/SC e mestre em Ensino de História pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
BITTENCOURT, Circe. Identidades e ensino de história no Brasil. In: CARRETERO, Mario; ROSA, Alberto; GONZÁLEZ, Maria Fernanda (orgs.). Ensino de história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007. P. 33-52
FONSECA, Selva Guimarães. Como nos tornamos professores de história: a formação inicial e continuada. In: ______. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas/SP: Papirus, 2003. p. 59-88
FONSECA, Thaís Nivia de Lima e. Exaltar a pátria ou formar o cidadão. In:__________. História & Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. P. 37-90.
LUCINDO, Willian Robson Soares. Histórico do Movimento Negro no Brasil, luta e resistência da militância às Políticas de Ação Afirmativa, a Declaração de Durban até a Lei 10639/03: a dívida social do Brasil com a população negra após o 13 de maio. In: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro (orgs.). Formação de professores: promoção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana. Florianópolis: DIOESC, 2014. p. 60-75.
MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor, Tempo, v. 11, nº 21, 2006, p. 49-64.
PROST, Antoine.  A história na sociedade francesa (séculos XIX e XX). In: ________. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. P. 13-32
SILVA, Mariana Heck. O ensino de História das Áfricas na Universidade do Estado de Santa Catarina (1998-2013). 2017. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.


6 comentários:

  1. Bom dia! Nós professores de História sempre somos perseguidos pelos regimes que não aceitam uma população pensante. Como podemos trabalhar pra reverter esse quadro?

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  2. Olá Caroliana, bom dia.
    Parabéns pelo texto, ficou muito bom. Concodro muito com as questões que colocaca sobre a dicotomia historiador/a x professor/a de História. Neste sentido gostaria que falasse um pouco sobre o papel dos Mestrados Profissionais em Ensino de História e se eles podem ou não contribuir para mudar esse quadro na formação inicial. Abraço, Eliane

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  3. Olá Carolina. Como é bom retornarmos, ou melhor, rememorar as vivências e a construção da história da historiografia brasileira. Para abrirmos mais o debate nessa sua temática, me questiono e pergunto: o que precisa para que a historiografia brasileira não seja apenas uma narrativa de um grupo, de uma classe ou apenas de uma pessoa?
    João Paulo Danieli

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  4. No processo de redemocratização na década de 1980, a ideia era extinguir a separação que existia, e ainda existe entre bacharelado e licenciatura. Você pode explicar por que essa luta não é alcançada pelos professores de História?

    Loíze de Souza Gama.

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  5. Visto que a formação de graduação atualmente é muito voltada para formar um profissional da historia relacionado a pesquisa. Como os profissionais que atuam com a licenciatura podem transpor o fazer históriogafico erudito para um linguagem adequada para alunos de educação fundamental ou de nível médio?
    Cassia Cristina Aleixo de Moraes

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