HISTÓRIA
DO ENSINO DE HISTÓRIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA: UM PROCESSO
CONTÍNUO DE TRANSFORMAÇÃO
Tornei-me
professora de História quando pela primeira vez pisei em sala de aula com esta
função. Não havia me acostumado a ser chamada por este tratamento. Foi uma
surpresa quando percebi que meus alunos já me viam como professora, apesar de
eu ainda não me ver a partir desta identidade. Porém, ser professor não é um
processo que tem um fim: constantemente nos transformarmos em professores.
Este
breve relato se justifica porque a maneira de me relacionar com o meu eu
professora parte da forma como eu vejo o ensino de história e a formação dos
professores de história, tema que se desenrolará neste ensaio, a partir das
leituras e discussões realizadas no Mestrado Profissional em História. Ambos
estão imbricados pois atuam dialogicamente um na construção do outro.
A
formação do professor de história é um processo contínuo que tem lugar tanto no
espaço pessoal como profissional do sujeito. É importante considerarmos como o
tempo e os diversos espaços socioeducativos formam o professor. Contudo, como
afirma Selva Fonseca (2003), é na formação inicial nos cursos de graduação que
os saberes históricos e pedagógicos são colocados como ponto central de debate
e problematização. Este é o momento inicial do processo de formação da
identidade profissional do professor, visto que, geralmente, será a primeira
vez que ele refletirá sobre o seu modo ser e estar na profissão.
A
própria disciplina de História surgiu no século XIX como uma necessidade de
formar profissionais aptos a ensinar uma história nacional, que formasse o
cidadão (PROST, 2008). Daí porque a constituição do ensino de história e a
formação de professores estão intimamente relacionadas.
Muito se
discute sobre a distância entre as práticas e saberes históricos que são
produzidos e mobilizados na universidade e aquilo que está presente nas
escolas. Pois se a formação inicial do professor é fundamental, o que acontece
quando ele se forma e passa a atuar na escola? E aqui se instala outro debate
presente nos cursos de graduação: ser historiador ou professor de História?
Fonseca
(2003) defende que o exercício da docência abarca um conjunto de habilidades
que possibilita trabalhar com saberes e valores por meio de processos
educativos desenvolvidos no interior do sistema de educação escolar. Mas, no
caso específico da disciplina, o saber docente consiste também no domínio do
conhecimento historiográfico, fazendo com que o professor de História seja ao
mesmo tempo um historiador. Não deveria haver dicotomia entre estas duas
identidades profissionais, pois elas se complementam.
O
documento das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos Superiores de
História apresenta um silêncio no que diz respeito ao papel destes cursos na
formação do professor; a ênfase recai na formação do pesquisador. A autora,
então, questiona: por que não ser historiador e professor? Por que a dicotomia
entre ensino e pesquisa? Selva Fonseca (2003) ainda faz uma crítica à formação
aplicacionista presente no documento: os saberes pedagógicos aparecem como
complementares, para cumprir uma função de instrumentação, ao invés de
emergirem como parte fundamental da formação do pesquisador-professor.
Podemos
atribuir este fator à maneira como a formação do professor foi se constituindo na
história recente do Brasil. Segundo Marcelo Magalhães (2006) foi somente com a
transição do período de Ditadura Militar para a democracia que o professor
deixou de ser visto apenas como um transmissor de conhecimento e passou a atuar
como coautor no processo de ensino-aprendizagem. Isto significa que pensar a
formação do professor como um pesquisador é relativamente recente e refletir
sobre o seu processo de transformação também, desde o curso de graduação até a
formação continuada, uma vez que o tornar-se professor nunca é um processo
acabado. Além disto, Selva Guimarães (2003) ainda aponta como é necessário
formar permanentemente o professor, ao mesmo tempo fazendo com que este
processo também reverbere em mudanças concretas no sistema educacional
brasileiro. Na constituição da História como uma disciplina escolar podemos ver
este processo: os objetivos e finalidades da disciplina dentro do espaço
escolar foram se transformando ao longo do tempo e com isto a formação e o
papel do professor em sala de aula.
A
História tornou-se disciplina escolar no Brasil após a independência, momento
em que se buscou estruturar um sistema de ensino para o Império, com objetivos
definidos e métodos pedagógicos próprios. O objetivo principal da disciplina
era a formação do cidadão produtivo e obediente as leis, controlado pelo Estado
por meio da educação nacional. Evidentemente que este ensino era voltado
principalmente para formar as elites dirigentes do país.
Circe
Bittencourt (2007) nos explica que a construção da identidade nacional esteve
sempre relacionada a constituição de um sentimento nacionalista e uma concepção
específica de povo. Thaís Fonseca (2011) complementa que desde o século XIX até
a década de 1930, as elites passaram a refletir sobre a construção da nação,
que deveria levar em conta a mestiçagem, considerada então como um problema,
pois envolvia aqueles indivíduos indesejados: os afro-brasileiros e indígenas.
Neste
sentido, a escolha das elites no poder, provenientes do setor agrário e escravagista,
foi a construção de um nacionalismo que se identificava com o mundo cristão e
branco europeu, seguindo o modelo francês de escolarização e implicando na
formação de uma consciência nacional repleta de estereotipias e exclusões
sociais (BITTENCOURT, 2007).
Desta
forma, as populações indígenas, por exemplo, apesar de representarem o símbolo
da nação, principalmente com a emergência do romantismo, foram apagadas do
ensino de História. Bittencourt (2007) afirma que tais populações apareciam
somente no estudo da fase inicial da colonização e depois de maneira pontual
quando se tratava de lutas e/ou confrontos na história do Brasil. Podemos ainda
nos questionar o quanto desta construção do passado acerca desta população
ainda permanece no ensino de História hoje e também na formação dos professores
de História.
Nas
décadas de 1930 e 40 o governo promoveu uma série de reformas para elaborar
políticas educacionais. O ensino de História foi consolidado, então, como
disciplina escolar dentro de uma proposta de formação da unidade nacional. A
partir desse momento, programas curriculares foram estruturados, com definição
de conteúdos, indicação de prioridades, orientação quanto aos procedimentos
didáticos e indicação de livros e de manuais (FONSECA, 2011). Houve também a
criação do Ministério da Educação e da Saúde, como eixo responsável pela
definição de programas educacionais, implicando na retirada da autonomia das
escolas no que diz respeito à elaboração de seu próprio programa.
Esta
reforma também definiu a História do Brasil e da América como centro do ensino.
No entanto, ela aparecia como componente da História da Civilização, tornando
seu espaço reduzido dentre todo o conjunto de conteúdo a ser ensinado. Segundo
explica Bittencourt (2007, p. 39):
“o ideário imperialista dos países europeus
expressava-se na configuração de uma história profana que transformou a
história universal em história da civilização. Civilização passou a ser o novo
conceito para designar progresso, separando e identificando os povos cada vez
mais em civilizados ou atrasados”.
Somente
com a Reforma Gustavo Capanema em 1942, a História do Brasil foi transformada
em disciplina autônoma e consolidou como seu objetivo fundamental a formação
moral e patriótica (FONSECA, 2011). Para consolidar o papel do estado-nação
neste processo, os principais personagens desta história foram os chefes
republicanos, construtores da pátria; reforçando a formação política do cidadão
brasileiro sob um viés único e homogeneizante.
O ensino
de História no Brasil, então, apresenta as disputas e confrontos entre grupos
que apresentavam projetos diversos para a nação. A História da Civilização
explicava, por exemplo, o porquê da dominação pelo racismo diante da
superioridade do branco. É relevante mencionar que, neste contexto, a
historiografia brasileira também confirmava este ideal, no qual o estágio de
civilização do povo brasileiro estava em risco por conta da mestiçagem.
Durante
o período da Ditadura Militar, esta concepção de formação do cidadão foi
aprofundada, agora com restrição à formação e à atuação dos professores a
partir da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, visando eliminar
qualquer tentativa de resistência ao regime então estabelecido. O ensino de
História, neste momento, tinha como objetivo formar cidadãos não críticos, mas
conformados com a sociedade hierarquizada que já estava colocada. Thaís Fonseca
afirma que “a História aparecia como uma sucessão linear de fatos considerados
significativos, predominantemente de caráter político-institucional, e no qual
sobressaíam os espíritos positivos que conduziriam a História. ” (2011, p.
58).
Tal
concepção de ensino de História criou o sentimento de um nacionalismo ufanista,
conforme aponta Bittencourt (2007), no qual as diferenças e conflitos presentes
na sociedade brasileira foram naturalizados. Os estudos sociais propostos eram
uma junção reduzida de história e geografia, sem profundidade teórica e
conceitual, somente o suficiente para que o aluno se adaptasse à comunidade brasileira
e ao sistema. Ensinar se tornou reproduzir conhecimento e a didática se
apresentava como uma instrumentalização das técnicas do professor para
transmitir este conhecimento.
No final
da década de 1970, com o processo de redemocratização, foi necessário repensar
o ensino de História, agora com projetos educacionais que refletissem sobre o
processo de construção da democracia no Brasil. Diferente do não questionamento
colocado pelo regime militar, propunha-se um ensino de História crítico, que reconhecesse
e problematizasse as desigualdades e conflitos presentes na sociedade
brasileira. Além disto, o estudante deveria desenvolver o domínio de algumas
habilidades próprias do método historiográfico, como a análise de fatos e suas
diferentes interpretações e o estudo de conceitos fundamentais para compreender
a sociedade.
A
historiografia brasileira também passava por um momento de revisitar obras
consideradas clássicas e fazer novos questionamentos às mesmas fontes.
Bittencourt (2007) aponta como um exemplo, a preocupação das reformulações
curriculares na década 1980 em enfrentar problemas como o racismo, até então
visto e analisado sob a ótica de um país da democracia racial. Os movimentos
sociais organizados tiveram um papel fundamental na construção de uma pauta
democrática para o futuro do país. A
qualidade do ensino de História, então, passou a estar relacionada à capacidade
desta disciplina em levar para a escola as discussões historiográficas mais
recentes.
A
educação para a diversidade teve, e ainda tem, lugar fundamental nas discussões
das organizações dos movimentos negros. Ela representa, nas palavras de Mariana
Heck Silva (2017), um espaço de luta política e de empoderamento dos sujeitos,
portanto de emancipação social e cultural. Além da inclusão de conteúdos no
currículo, a expectativa é romper com o racismo institucional e modificar o
sistema então estabelecido, eurocêntrico e branco. Destacam-se duas demandas
sempre colocadas em pauta nesta área: a escolarização de homens e mulheres
negros e a inserção das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras no
ensino.
Em
relação a esta segunda demanda, se trata de uma reivindicação antiga: a partir
da década de 1970, o movimento negro passou a denunciar o espaço escolar como
excludente e a invisibilidade da experiência de africanos, africanas e seus
descendentes na história do Brasil (SILVA, 2017). Assim, desde então, o
movimento buscou formas de institucionalizar o ensino da temática por meio de
projetos de lei. Conforme explica Willian Lucindo (2014), o primeiro projeto a
ser apresentado com tais características foi elaborado pelo deputado federal
Abdias do Nascimento , no ano de 1983. Neste, seu autor propunha a criação de
mecanismos de compensação à discriminação racial, incluindo política de cotas
para homens e mulheres negros no serviço público e a incorporação do ensino de
história e cultura africana e afro-brasileira nos livros didáticos, educação
básica e universidades. Apesar de aprovado, o projeto foi arquivado no ano de 1989,
como pontua Mariana Heck Silva (2017). Para Willian Lucindo (2014), isto se
justifica porque o projeto negava contundentemente a existência da democracia
racial no Brasil, que mantinha a hierarquia e privilégios da branquitude,
silenciando por sua vez o debate sobre o racismo estruturante da sociedade
brasileira.
Todavia,
a luta contra o racismo institucional posto não acabou: senadores e deputados
do movimento negro continuaram a propor projetos sobre a temática, tomando como
base aquele escrito por Abdias do Nascimento. Uma proposta apresentada no ano
de 1995, pela senadora Benedita da Silva não foi aprovado e acabou sendo
arquivado. No mesmo ano, Humberto Costa apresentou outro projeto de lei que,
apesar de arquivado, foi reapresentado por Ben-Hur Ferreira e Esther Grossi em
1999. Este projeto de lei, de número 259, tinha como foco a área da educação
tornando obrigatório o ensino das relações étnico-raciais, História da África e
da cultura afro-brasileira (SILVA, 2017).
Diante
deste breve histórico, podemos observar como o ensino de história e a formação
do professor de história sempre esteve relacionado com a formação de um cidadão
a partir de uma identidade nacional. Se no primeiro momento o cidadão seria
aquele súdito fiel à monarquia, hoje a cidadania aparece como um valor de um
sujeito participativo e consciente da sua agência na história e da sua
responsabilidade perante a sociedade na qual vive. De uma identidade nacional
homogênea e monolítica, passamos a identidades plurais e multifacetadas, que
ressignificaram o conceito de cidadania, identidade e ensino de História no
Brasil.
Retornamos,
então, ao breve relato que fiz no início deste ensaio. O tornar-se professora
de história é um processo contínuo que demanda reflexão e análise crítica da
prática, do momento em que vivemos e do local de onde falamos e estamos
presentes. Assim como a historiografia se renova a partir de novos
questionamentos, o ensino e o professor de história acompanham este movimento.
REFERÊNCIAS
Carolina Corbellini Rovaris é
professora da Educação Básica em Lages/SC e mestre em Ensino de História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
BITTENCOURT,
Circe. Identidades e ensino de história no Brasil. In: CARRETERO, Mario; ROSA,
Alberto; GONZÁLEZ, Maria Fernanda (orgs.). Ensino
de história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007. P. 33-52
FONSECA,
Selva Guimarães. Como nos tornamos professores de história: a formação inicial
e continuada. In: ______. Didática e Prática de Ensino de História.
Campinas/SP: Papirus, 2003. p. 59-88
FONSECA,
Thaís Nivia de Lima e. Exaltar a pátria ou formar o cidadão. In:__________. História & Ensino de História. Belo
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LUCINDO,
Willian Robson Soares. Histórico do Movimento Negro no Brasil, luta e
resistência da militância às Políticas de Ação Afirmativa, a Declaração de
Durban até a Lei 10639/03: a dívida social do Brasil com a população negra após
o 13 de maio. In: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro
(orgs.). Formação de professores:
promoção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e
africana. Florianópolis: DIOESC, 2014. p. 60-75.
MAGALHÃES,
Marcelo de Souza. Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas
curriculares, Ensino Médio e formação do professor, Tempo, v. 11, nº 21, 2006, p. 49-64.
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Antoine. A história na sociedade
francesa (séculos XIX e XX). In: ________. Doze
lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. P. 13-32
SILVA,
Mariana Heck. O ensino de História das
Áfricas na Universidade do Estado de Santa Catarina (1998-2013). 2017.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2017.
Bom dia! Nós professores de História sempre somos perseguidos pelos regimes que não aceitam uma população pensante. Como podemos trabalhar pra reverter esse quadro?
ResponderExcluirOlá Caroliana, bom dia.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, ficou muito bom. Concodro muito com as questões que colocaca sobre a dicotomia historiador/a x professor/a de História. Neste sentido gostaria que falasse um pouco sobre o papel dos Mestrados Profissionais em Ensino de História e se eles podem ou não contribuir para mudar esse quadro na formação inicial. Abraço, Eliane
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ResponderExcluirOlá Carolina. Como é bom retornarmos, ou melhor, rememorar as vivências e a construção da história da historiografia brasileira. Para abrirmos mais o debate nessa sua temática, me questiono e pergunto: o que precisa para que a historiografia brasileira não seja apenas uma narrativa de um grupo, de uma classe ou apenas de uma pessoa?
ResponderExcluirJoão Paulo Danieli
No processo de redemocratização na década de 1980, a ideia era extinguir a separação que existia, e ainda existe entre bacharelado e licenciatura. Você pode explicar por que essa luta não é alcançada pelos professores de História?
ResponderExcluirLoíze de Souza Gama.
Visto que a formação de graduação atualmente é muito voltada para formar um profissional da historia relacionado a pesquisa. Como os profissionais que atuam com a licenciatura podem transpor o fazer históriogafico erudito para um linguagem adequada para alunos de educação fundamental ou de nível médio?
ResponderExcluirCassia Cristina Aleixo de Moraes