O DISCURSO EUROCÊNTRICO DE PRÉ-HISTÓRIA NOS
COMPONENTES CURRICULARES DO ESTADO DE SÃO PAULO 2014-2016
Este
trabalho busca discutir e problematizar algumas questões relacionadas à forma
como os discursos da arqueologia latino-americana foram incorporados (ou não)
como saberes históricos escolares nos livros didáticos de História, no período
de 2014-2016 no estado de São Paulo. Os discursos dos currículos pretendem realizar
uma abordagem da arqueologia latino-americana, mas, o que ainda prevalece é um
discurso eurocêntrico. A análise do conteúdo pode e deve contribuir para que
estes currículos, ao incorporar mudanças, possibilitem ainda, a revisão de
comportamentos normativos, preconceitos e discriminações estabelecidos sobre
diferenças.
Introdução
O programa
“São Paulo faz Escola” foi criado em 2007 e implementado em 2008. Segundo a
Secretaria de Educação “com a medida, a Educação pretende fornecer uma base
comum de conhecimentos e competências que, utilizada por professores e gestores
das mais de cinco mil escolas estaduais paulistas, permita que essas unidades
funcionem, de fato, como uma rede articulada e pautada pelos mesmos objetivos”
(SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO), ou seja, trata-se da
implantação de um currículo único para todas as escolas da rede pública
estadual. Desta forma, o material de apoio, denominado de Caderno do Professor
e Caderno do Aluno é distribuído anualmente e o mesmo plano de aula permeia por
todo estado. De início a intenção da implantação do Currículo seria de unificar
sistematicamente todas as escolas do estado de ensino fundamental e médio com
um único impresso regulador voltado para a preparação do aluno para as
avaliações externas de desempenho escolar, como o Sistema de Avaliação do
Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2010).
O estudo da
produção de tais currículos transparece preocupações recorrentes com o papel da
História como disciplina escolar (CAETANO, 2015). Em diferentes momentos da
história do Brasil, é possível analisar a preocupação do Estado com a
institucionalização de currículos e programas de História para a educação
básica. De acordo com Silva e Fonseca (2010) “a partir do século XIX
identificam-se dezoito programas de Ensino relativos às reformas curriculares
entre os anos de 1841 e 1951”. Tais programas foram organizados pelo Colégio
Pedro II, do Rio de Janeiro, de acordo com as diretrizes das várias reformas
curriculares ocorridas naquele período. Ainda segundo a análise de Silva e de
Fonseca, os textos dos documentos curriculares "prescritos" são
reveladores de objetivos, posições políticas, questões teóricas que configuram
não apenas o papel formativo da História como disciplina escolar, mas também
estratégias de construção/manipulação do conhecimento histórico escolar.
(SILVA; FONSECA, 2010).
Conforme
observou Soares, a história das populações ameríndias antes do contato europeu
tem abordagem pouco privilegiada nos livros e manuais didáticos dos ensinos
fundamentais (SOARES, 2013, p.520) quando encontram espaço nesses materiais,
são abordadas no capítulo da pré-história, generalizando conceitos e
desprezando peculiaridades culturais presentes em diversas regiões do espaço
nacional. Levando em consideração que a
utilização do Caderno do Professor e dos livros didáticos são impostas no
Estado de São Paulo, e, julgando o poder que é conferido aos mesmos por ser um
discurso autorizado (e único) para a educação básica de um Estado, o propósito
desse trabalho é analisar dentro das ideias de Foucault (1979) os “discursos”
como um conjunto de regras anônimas, históricas e determinadas socialmente. Uma
vez que os discursos no caderno do professor e no livro didático se baseiam
sobre o que é para ser ensinado aos alunos no ensino de pré-história no período
de 2014 a 2016, levando em consideração que o objeto concentra valores,
crenças, visão de mundo dos autores; e consequentemente isso pode ser absorvido
pelo leitor.
Tomando os
componentes curriculares utilizados na rede pública de ensino do estado de São
Paulo como fonte histórica, dentro de suas múltiplas possibilidades de pesquisa
e interpretação e, a fim de realizar uma análise comparativa entre o livro
didático “Caminhos do Homem” publicado em 2013 e de autoria de Marques e
Berutti e o Caderno do Professor, elaborado pela Secretaria da Educação do
Estado de São Paulo em 2014, bem como seus conteúdos imagéticos entre outras
possíveis fontes que os mesmos contem, e, levando em consideração a
historiografia “pré-histórica”, pretendo realizar uma análise da cultura
material enquanto suporte para o ensino de acordo com esses componentes curriculares
da educação do estado de São Paulo.
O material de apoio ao Currículo do Estado de
São Paulo abre espaço para questionamentos em relação aos conteúdos
apresentados no ensino da pré-história, bem como sua aproximação com a
arqueologia, nas mais diversas fontes. O mesmo ocorre com o livro didático, e,
desta forma é relevante discutir como os conteúdos abordam tal conceito.
Através da análise do discurso Foucaultiana pretendemos
visualizar se os livros didáticos e currículos permitem a aproximação com a
arqueologia, por meio das mais diversas fontes que os mesmos apresentam em seus
conteúdos questionando se os assuntos apresentados contribuem para perceber a
condição humana em toda sua diversidade, complexidade e historicidade, ou se estão
a serviço da manutenção dos conceitos e preconceitos historicamente
estabelecidos. Em suma, o intuito deste trabalho é discutir e procurar entender
a abordagem da arqueologia nos currículos como elemento essencial da identidade
latino-americana, analisando o que se discute, e o que é omitido.
Discurso e Poder
O discurso é
um suporte abstrato que sustenta os mais variados textos que circulam em uma
sociedade. É ele o responsável pela concretização, em termos de figuras e
temas, das estruturas narrativas. Foucault (1996) estabelece que todo texto,
até mesmo o didático, é um discurso, como também uma prática, desta forma
salienta que o discurso é conferido de poder “(...) a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos”
(FOUCAULT, 1996, p. 8-9). Fischer (2001) salienta que há enunciados e relações,
que o próprio discurso põe em funcionamento, analisar o discurso seria dar
conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas,
que estão "vivas" nos discursos. Ou seja, é necessário dentro da
análise buscar explorar os materiais ao máximo, visto que os mesmos são
produção histórica, ideológica, da mesma forma que palavras são também
concepções; na medida em que a linguagem também é construída de práticas
(FISCHER, 2001, p. 200). Dessa forma, a importância da análise do discurso no
que diz respeito ao Ensino de História, aqui especialmente as situações de aprendizagem
denominadas em “pré- história” é esclarecida na medida em que se deve “pensar
nos lugares, nos papéis, na importância formativa da História no currículo da
Educação básica requer concebê-la como conhecimento e prática social, em
permanente (re)construção, um campo de lutas, um processo de inacabamento.”
(SILVA; FONSECA, 2010).
Os
currículos de História expressam visões e escolhas, revelam acordos, conflitos,
tensões, consensos, aproximações e distanciamentos; “o discurso não tem apenas
um sentido ou uma verdade, mas uma história” (FOUCAULT 1986, p.146). Os
interesses do Estado estão ali, escondidos nas entrelinhas do documento,
portanto, é importante ver esse documento como um artefato cultural de seu
próprio tempo, disposto a criar o cidadão desejado. Em suma a compreensão da
temporalidade dos discursos, evidencia a preocupação foucaultiana em relação a
“transparência" não só dos enunciados, mas dos próprios fatos humanos.
As análises
discursivas para Foucault (1986) se caracterizam de algum modo como elo entre
discurso e prática. Vale afirmar que este conceito reúne elementos tanto da
fabricação e ajuste dos discursos, estes compostos por uma unidade de
enunciados, quanto da aplicação e produção destes nas instituições, aqui
escolares, e nas relações sociais, definindo dessa forma um saber; além de
determinar funções e formas de comportamento. O que está em pauta na análise
foucaultiana dos discursos é a conexão acerca do que pensamos, dizemos e
fazemos caracterizando determinado período, saliento o ensino de pré-história
elaborado pelo Currículo do Estado de São Paulo, uma vez em que o acontecimento
discursivo são acontecimentos históricos. Deste modo, é possível dialogar em
uma prática discursiva a fim de captar o espaço em que o sujeito toma posição
para falar dos objetos de que se ocupam seus discursos, aqui o ensino de
pré-história latino-americana. Bem como analisar o campo dos enunciados em que
os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam, e como é
garantido o conhecimento acerca do assunto, se os mesmo são puramente massivos,
ou se contribuem para com o conhecimento acerca do mesmo.
O discurso delineia o sujeito, moldando e posicionando
quem ele é e o que ele é capaz de fazer. Como o poder circula pela sociedade, é
possível verificar regimes de poder como geradores de opiniões, significados e
como discurso. Logo, é possível perceber como e por que algumas categorias do
pensamento e linhas de argumentação se tornam comumente verdades enquanto
outras maneiras de ser, pensar e agir são subjugadas e marginalizadas. Ainda de
acordo com Foucault (1986) um discurso não está sozinho na história e segue as
relações já postas pelos saberes e pelas instituições já estabelecidas, que lhe
dão uma determinada positividade. O autor ainda salienta que os discursos agem
como sistema de exclusão, uma vez que possui “(...) suporte institucional:
(que) é reforçado e reconduzido por todo um compacto conjunto de práticas como
a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,
como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje.” (FOUCAULT, 2001,
p. 17). Os matérias didáticos, deste modo, são um instrumento de valor, que
possuem uma fonte de verdade que não deve ser questionando, uma vez que os conteúdos
estão prontamente elaborados e institucionalizados.
Discurso de pré-história latino-americana nos
materiais didáticos
A seleção
das fontes se dá pela distribuição das mesmas no período de 2014 à 2016 em
escolas da rede pública do Estado de São Paulo. Os materiais analisados
correspondem ao 1º ano do ensino médio, e, os materiais foram acessados nas
escolas estaduais da cidade de Cândido Mota no interior do estado.
O Caderno do
Professor (SÃO PAULO, 2014) traz o conteúdo (discurso) prontamente realizado para
ser discutido em sala de aula. Ao analisar o Caderno do Professor mais
estritamente a Situação de Aprendizagem 3 – A PRÉ-HISTÓRIA SUL-AMERICANA,
BRASILEIRA E REOGIONAL, procurou-se identificar discursos referentes as
populações que antecederam à escrita latino-americana, esses que por sua vez
estão inseridos no termo “pré-história”, e analisar como os mesmos foram
apresentados num momento em que as pesquisas arqueológicas têm se
intensificado.
De início o
texto inserido no currículo destinado ao docente aborda que “os estudos sobre a
Pré-História sul-americana estiveram preocupados com a questão do povoamento do
continente, e no Brasil, são de tradição recente” (SÃO PAULO, 2014, p. 14). O
material ainda deixa claro que desenvolver esses estudos colabora para a
valorização de diferentes culturas indígenas, uma vez que essas são
descendentes dos grupos que são conhecidos por meio da arqueologia. Finalizando
a introdução, o material alega que a temática da arqueologia se encontra
distante dos livros e materiais didáticos. No tópico sondagem e sensibilização a discussão sobre as pesquisas
arqueológicas e o distanciamento das mesmas dentro do âmbito escolar.
Sucessivamente uma proposta de atividade é fornecida:
"A arqueologia auxilia a compreensão da história e
cultura de um país. Com base nas aulas, justifique essa afirmação, utilizando
como exemplo o caso brasileiro. Considerando as discussões sobre interdisciplinaridade
já realizadas e as referências feitas ao conhecimento arqueológico, espera-se
que os alunos demonstrem o conhecimento já aprendido sobre a importância da
Arqueologia para a compreensão da história da humanidade e de sua própria
história. Nessa oportunidade ao desenvolver o conhecimento sobre o passado,
você poderá ampliar uma reflexão maior sobre o presente (Como chegamos até
aqui? Por quais meios? Etc.) ou seja, nosso olhar para o passado é sempre
contextualizado" (SÃO PAULO, 2014, p. 19).
Em seguida,
o processo de ensino-aprendizagem é classificado por etapas, a sugestão da
primeira etapa é “aproximar, progressivamente, os estudos da Pré-História da
realidade dos alunos (Pré-história geral, sul-americana, brasileira e
regional), cria-se a oportunidade de incitar neles o interesse pelo tema e,
também, pela valorização do patrimônio material e imaterial de seu entorno
(...)” (SÃO PAULO, 2014, p. 19). O intuito, segundo o material, nesta
primeira etapa é de lidar com a diversidade, e, dialogar sobre a questão de
patrimônio e cultura material, com a finalidade de proporcionar conhecimentos
sobre as sociedades passadas. A segunda etapa é sugerida a discussão acerca do
povoamento da América. Reforçando o amplo debate a respeito das hipóteses, mas,
a que prevalece ainda é a hipótese em relação ao estreito de Bering, presença
humana registrada entre 14 e 15 mil anos, uma vez que o Mapa da hipótese de Bering (Figura 1) está presente para a
discussão.
A terceira e
última etapa tem por objetivo identificar e classificar as culturas indígenas
na pré-história e na contemporaneidade. Na pauta estão inseridas as populações
indígenas brasileiras, descendentes de grupos que aqui habitaram em um
pretérito. O discurso toma direção em relação as práticas culturais indígenas
antes e pós o momento de colonização portuguesa, a fim de estabelecer reflexões
sobre o choque cultural que “se reverteu em opressão e extermínio, pelos
portugueses, dos grupos indígenas encontrados” (SÃO PAULO, 2014, p. 22). O
capítulo se encerra com algumas questões a respeito do conteúdo tratado, e, com
algumas sugestões de pesquisa sobre a temática da arqueologia brasileira, a fim
de questionar a respeito do patrimônio cultural brasileiro e como os povos
indígenas estão inseridos neste contexto.
Figura 1 – Mapa da hipótese de Bering
Fonte:
ARRUDA, José J. A. Atlas histórico básico. São Paulo: Ática, 2002, p. 20. In: SÃO
PAULO, Secretaria da Educação. Material de apoio ao Currículo do Estado de São
Paulo: caderno do professor; história, ensino médio 1ª série. 2014, p. 20.
Como o
currículo já havia mencionado, ao analisar o livro didático Caminhos do Homem de Marques e Berutti
(2013), foi possível observar que não existe nenhuma passagem a respeito da
pré-história latino-americana. O que é abordado em pré-história, de maneira bem
superficial, está inserido no Capitulo I:
Relações homem-natureza: das origens do homem ao neolítico. A discussão percorre sobre a relação do
homem com o meio ambiente e como o mesmo se desenvolveu a partir desse meio,
pautando a questão de desenvolvimento ligado às técnicas agrícolas e a
domesticação de animais com o intuito de realizar uma discussão atual onde, em
pauta está a relação atual do homem com a natureza, uma vez que a mesma
encontra-se devastada pelo mesmo na medida em que esse foi se desenvolvendo.
Em sua
introdução o livro aborda o surgimento do Homo
Sapiens no continente Africano, mas deixa claro que, outra espécie humana o
Australopithecus já habitavam esse
continente bem como já fabricavam ferramentas provindas de pedras (MARQUES;
BERUTTI, 2013, p.11). Continuando a análise sobre as espécies humanas agora o
Homo Erectus é abordado com uma passagem explicativa em relação a essa
denominação “capaz de caminhar e que já fabricava um maior número de
ferramentas para usos mais variados” (MARQUES; BERUTTI, 2013, p. 12). Após as
referências no que diz respeito ao desenvolvimento da espécie humana, o
conteúdo abordado no livro didático que estabelece diálogo com o material de
apoio distribuído pelo estado de São Paulo diz respeito ao “Povoamento mundial
pela espécie humana”, assim como no material de apoio o livro também apresenta
ao leitor um mapa no qual a hipótese de Bering é discutida e interpretada, imagens
reproduzidas na Figura 1 e 2; uma vez que tal teoria é a mais provável “porta
de entrada” do homem moderno na América (MARQUES; BERUTTI, 2013, p. 12).
Marques e
Berutti não abordam nada a respeito dos grupos que habitaram o território
latino-americano. A discussão dos autores após a hipótese de Bering se dá no
que os mesmos denominam “Revolução Neolitica” nesse contexto a Figura 3 surge a
fim de ilustrar a passagem do Paleolítico para o Neolítico.
Figura 2 – Povoamento do Mundo pela Espécie Humana
Fonte: Atlas
histórico escolar. Rio de Janeiro: Fename, 1977. IN: MARQUES, Adhemar; BERUTTI,
Flávio. Caminhos do Homem: história, 1º ano: ensino médio: manual do professor.
2ª edição. p. 12.
Figura
3 – Atlas Histórico
Fonte: VIDAL-NAQUET, P. BERTIN, J. Atlas histórico.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 12 e 13 IN: MARQUES, Adhemar;
BERUTTI, Flávio. Caminhos do Homem: história, 1º ano: ensino médio: manual do
professor. 2ª edição. p. 14.
Os autores
salientam que antes do que eles denominam como Revolução Neolítica, o ser humano estava limitado em
pequenos grupos com constante preocupação sobre seus alimentos. Então a partir
da Revolução Neolítica os grupos desenvolvem uma fonte de alimento segura uma
vez que os mesmo passam a ter outros hábitos e se ampliam práticas culturais
contribuindo assim, para o desenvolvimento da escrito ao fim do Neolítico
(MARQUES; BERUTTI, 2013, p.14). Para eles, a primeira revolução que cambiou a
economia humana foi dada a partir do momento em que o mesmo estabelece controle
sobre o abastecimento de sua alimentação. Nesta abordagem está inserido um
trecho de Ornellas (2003) onde a discussão se dá na medida em que o Homo Faber, aquele que desenvolveu o
artesanato, os instrumentos líticos e a técnica estocar alimentos; passa após a
“Revolução Neolítica” a realizar “progressos” como dominar as fundições e
descobrir novas técnicas de produções e de conservação de alimentos a partir
dessas novas práticas este é denominado Homo
Economicus. Uma vez que os mesmos passam a ser produtores, tal feito é
esboçado no livro pela Figura 4:
Figura
4 – Áreas Agrícolas do Neolítico
Fonte: BOMBI, G.; BALLERA, A.; VALBARDI, E. II grande
atlante storico Ilustrado. Milão: Vallarde, 1985 p.9 (Adaptação de Laércio de
Mello) IN: Fonte: MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio. Caminhos do Homem:
história, 1º ano: ensino médio: manual do professor. 2ª edição. p. 15.
O material
encerra a discussão, pertinente a este trabalho, sobre a noção de cultura e
como a partir dela o ser humano transformou a natureza e relacionou-se em
sociedade. Frisando como a partir dos feitos da Revolução Neolítica foi
decisivo para com a história da sociedade humana. Uma última consideração é
levantada a partir do texto de Engels (1884), a fim de estabelecer
questionamentos entre o trabalho produtivo do homem e a imposição do
patriarcalismo. Os autores apontam que de maneira geral em fins do Neolítico:
·
Ocorreu a imposição da família patriarcal e a mulher
foi relegada a um segundo plano;
·
Consolidou-se o processo de sedentarização e surgiram
as aldeias, núcleos urbanos e necrópoles;
·
Desenvolveu-se a agricultura, a domesticação de
animais e a formação de rebanhos;
·
Ampliou-se o universo cultural de alguns grupos
humanos, que inclusive desenvolveram a escrita;
·
Os homens passaram a valer-se de símbolos e diferentes
linguagens, não apenas para registrar, mas também para transmitir o
conhecimento;
·
Superou-se a noção de que os bens eram propriedade
comum de uma tribo;
·
Tornaram-se mais complexas as formas de organização da
produção, inclusive com a modificação da natureza da propriedade que, em
algumas comunidades, passou a ser privada. (MARQUES; BERUTTI, 2013, p.18)
Pontuando
assim, como a Revolução contribuiu para a o processo de desenvolvimento do homem,
e como a partir desse período o mesmo passa a uma ideia de progresso. Vale
ressaltar ainda, a palavra homem para todas as passagens o que gera a quase
invisibilidade das mulheres, sujeito menor numa Pré-História escrita por
homens. Ademais, como salienta Pagnossi (2017), todo esse discurso em torno do
termo homem para se referir à humanidade “é algo carregado de androcentrismo e
excludente aos “outros” não “homens”, ou seja, mais da metade da população
mundial” (p. 61). De modo geral, os conteúdos utilizados trazem apropriações
persistentes de imagens que informam um “mundo” ainda bastante masculino e heteronormativo.
Considerações e contribuições da Arqueologia
Latino-Americana
A
arqueologia sofre forte influência das ideias evolucionistas a partir do século
XIX, e buscar a partir de então enfatizar um processo de evolução baseado no
eurocentrismo (DOMINGUES, 2003, p. 111). O ensino da pré-história baseado na
arqueologia tem grande importância quanto a formação identitária dos alunos,
pois a condição de identidade de seres humanos é bem retratada no estudo dos
nossos primórdios (SOARES; PERIUS; AREND, 2013, p. 526). Soares; Perius e Arend
ainda destacam:
"(...)
Um grande problema encontrado no ensino da pré- história é o uso de referências
históricas, como exemplo o eurocentrismo, que dificulta o entendimento da
sociedade como um todo, deixando de lado a composição de uma história geral.
Baseando-se somente numa pré-história europeia, acaba se esquecendo de que na
América, a pré-história também existiu e que não era composta somente de povos
indígenas. E cabe aos livros didáticos diferenciarem isso, para que os alunos
não confundam ou até mesmo criem uma visão única de pré-história". (SOARES;
PERIUS; AREND, 2013, p. 526).
Herberts e
Comerlato (2007) trazem contribuições sobre o conceito de pré-história,
enfatizando que este pode ser o foco para uma ampla discussão dos ditos “povos
sem história”. A alteração deste termo por “pré-colonial, pré-cabralino ou pré-colombiano
não foram suficientemente apropriados, continuando-se a utilização do
referencial eurocêntrico.” (Herberts; Comerlato. 2007. p. 4). Os habitantes da
dita pré-história latino-americana corriqueiramente são tratados como povos sem
história, justamente pelo preceito de que a história assomasse depois do
surgimento da escrita. Por intermédio da arqueologia é que se pode adquirir
fontes que comprovem a existência tanto da história como da cultura nestes/destes
povos. Caso de populações que não
são citadas nos materiais, reforçam a ideia de marginalizados, uma vez que
estudos revelam civilizações desenvolvidas economicamente, Martins contribuiu
com sua dissertação a respeito do “dinheiro primitivo” na sociedade Inca, para
a autora:
"(...)
o dinheiro primitivo é sempre visto de forma descontextualizada e unilinear:
ora concebendo-o como o início de uma cadeia evolutiva unívoca que parte das
conchas e termina no cartão de crédito; ora simplesmente afirmando – a partir
de uma definição moderna do dinheiro – a sua não existência nas sociedades
antigas". (MARTINS, 2001, p.2)
A partir da
breve análise realizada nos materiais, é possível observar que as pesquisas
arqueológicas não estão postas em debates, uma vez que alguns pesquisadores
refutam e debatem diretamente com a teoria de povoamento da América, caso de
Niéde Guidon que em suas escavações no estado do Piauí, encontraram vestígios
ainda mais antigos chocando com a “arqueologia tradicional, dominada pela visão
dos norte-americanos, que situam a chegada do homem nas Américas há cerca de 13
mil anos, vindo da Ásia via estreito de Bering” (PIVETTA, 2008, p.74). Outra
tese a cerca dessa hipótese se dá entre 1984 e 2004, onde os arqueólogos Denis
Vialou e Águeda Vilhena Vialou, do Museu Nacional de História Natural da França
(PIVETTA, 2017, p. 82), coordenaram escavações próximo a cidade de Cuiabá no
Mato Grosso, tais pesquisas indicaram a presença do homem por volta de 27 mil anos.
Ademais da
problemática presente nos livros didáticos a respeito do pouco (ou nenhum)
conteúdo referente a povos latino-americanos, existe também a questão da concepção
do evolucionismo social, existente nos
materiais analisados:
"É
importante considerar, ainda, que a Revolução Neolítica, pelos seus impactos –
sedentarização, formação de aldeias e agrupamentos urbanos, divisão e
especialização do trabalho, expansão agrícola e domesticação de animais,
produção de excedentes e surgimento do comércio -, foi decisiva na história da
sociedade humana. Sua importância é comparável ao processo histórico que se
verificou mais recentemente: a Revolução Industrial e, consequentemente, a
consolidação da produção capitalista". (MARQUES; BERUTTI, 2013, p. 17)
Essa
passagem reproduz uma abordagem onde categoriza o passado das sociedades pretéritas
a partir de modelos estruturados que também acabam apontando para uma visão de
história marcada pela ideia de progresso. Os autores são influenciados pela obra
de Friedrich e Engels (1884), a mesma como já mencionado é utilizada para
finalizar o capítulo aqui estudado do livro didático de Marques e Berutti
(2013). A História nesta obra é marcada por um ponto de vista teleológica de
forma que os modos de produção são apresentados como um padrão válido para todos
os povos do universo, numa visão evolucionista típica do século XIX, notadamente
no campo da economia política (VASCONCELLOS; ALONSO; LUSTOSA, 2000, p. 235).
Ainda
seguindo essa corrente de pensamento da segunda metade do século XIX os
materiais abordam as sociedades ditas como pré-histórica de modo que estivessem
em estágio de cultura atrasado ou inativo em relação ao modelo que vai ser
alcançado: o da sociedade europeia. Além do mais, tal corrente propõe que as
sociedades se desenvolveram de modo linear em direção ao progresso material.
Para Azevedo (1994) nada é tão velho e conservador que “a atitude dos homens
contemporâneos perante o passado, querendo restaurá-lo a todo custo no futuro,
reafirmando o poder mágico da tecnologia, na prestidigitação de que a História
presente, do progresso contínuo, mediante a técnica, nos trará a imortalidade”
(AZEVEDO, 1994, 20).
O território
geopolítico atualmente estabelecido não corresponde também aos territórios de
grupos pretéritos e seus descendentes, um exemplo são territórios onde viveram
os povos Charruas, esses compreendiam várias tribos entre o Sul do Brasil, a
região Entre Ríos da Argentina até sua maior área de concentração no território
hoje pertencente ao Uruguai. (GRASSO, 1994, p. 666). A partir desse simples
exemplo cabe compreender que grandes sociedades se estabeleceram e se
desenvolveram por todo território latino-americano. De acordo com Coe; Snow e
Benson (1989) “um mapa não pode mostrar com precisão as relações entre as
distintas culturas de toda a área com outros exteriores a ela, nem indicar as
diferenças entre os períodos ou no tempo em se prolongaram as diferentes
influências” (COE; SNOW; BENSON, 1989, p. 157).
Considerações
Finais
O discurso científico
evolucionista presente nos materiais analisados, atua de maneira com que reforça
uma visão colonizadora, uma vez que como já mencionado, o conceito de
modernidade está ligado ao esquecimento/exclusão de outrem. Tal discurso de
modernidade está pautado ao que está incluso na Europa, excluindo -
“esquecendo” - dessa maneira da América Latina.
Uma vez não
discutido, o conteúdo de arqueologia latino-americana
acaba por realizar a atividade de subjugar povos que habitaram tal território.
Essa discussão é pertinente de modo que passe a não reforçar uma visão de
superioridade em relação as culturas distintas. O que deve ficar evidente é
tanto as sociedades europeias quanto as sociedades ameríndias sempre foram
contemporâneas e resultam de processos históricos intrínsecos e particulares.
As sociedades indígenas não estão relacionadas com o passado das sociedades
europeias como quiseram demonstrar os evolucionistas sociais. Vale ressaltar
que essa ausência resulta diversos enfrentamentos causados pela dita
“modernidade” por meio de reivindicações dos mais diversos grupos
latino-americanos.
Portanto, a
partir desta análise feita sobre os currículos distribuídos no período de
2014-2016 pelo estado de São Paulo, mas especificamente na cidade de Cândido
Mota, foi possível concluir e perceber o silenciamento em relação as grandes e
distintas sociedades que estiveram presentes em todo território latino-americano.
Os problemas e inadequações que os mesmos apresentam, é notado pela a falta do
conhecimento em relação a arqueologia, visto que ela é tratada de forma
superficial e expressa pontos de vista que reforçam uma concepção de cultura eurocentrada.
Renata de
Oliveira Manfio é mestranda pelo PPG- Interdisciplinar em Estudos
Latino-Americanos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
UNILA, Foz do Iguaçu-PR.
FONTES UTILIZADAS:
FONTE
1: MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio.
Caminhos do Homem: história, 1º ano: ensino médio: manual do professor. 2ª
edição. Base Editorial: Curitiba-PR, 2013. Livro didático utilizado na escola
pública EE Rachid Jabur da cidade de Cândido Mota interior de São Paulo.
FONTE 2: SÃO PAULO, Secretaria da Educação. Material de apoio ao
Currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor; história, ensino médio
1ª série/ Secretaria da Educação; Coordenação geral, Maria Inês Fini, equipe,
Diego López Silva, Glaydson José da Silva, Mônica Lungov Bugelli, Paulo
Micelli, Raquel dos Santos Funari – São Paulo: SE, 2014. Caderno
distribuído e utilizado pelos professores em todo o estado de São Paulo durante
o período de 2014 a 2016.
Referências:
AZEVEDO, N.
P. DE. Arqueologia e modernidade.
Revista de Arqueologia, São Paulo, 8(r):r7-23, 1994.
BRASIL. MEC.
CNE. Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Básica – Parecer 7/2010. Brasília: Diário Oficial da
União, 9 jul. 2010, seção 1, p.10.
CAETANO,
José A. G.; CAINELLI, Marlene R. O
CURRÍCULO E O ENSINO DE HISTÓRIA NO ESTADO DE SÃO PAULO: O QUE DIZEM OS
PROFESSORES? In: XVI Semana da Educação, VI Simpósio de Pesquisa e
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Bom dia! Infelizmente o eurocentrismo está presente em todos os periodos da História, incluindo a Historia. Com esse curriculo do Estado de São Paulo procurei trabalhar de uma forma que afastasse a visão eurocentrica. Foi dificil, pois o aluno já trás o eurocentrismo desde o ensino básico.
ResponderExcluirOlá,Renata de Oliveira Manfio, você construiu um bom ensaio, contudo duas questões me chamaram a atenção. A primeira é uma crítica ao eurocentrismo e a imediata utilização das teses de Michael Foucault. Ora, existe um imperialismo mais adequado ao contexto latino-americano? Ou o francês é realmente possível, didaticamente falando, para explicar as práticas discursivas do passado ameríndio? O segundo ponto reflexivo é que no seu texto há uma crítica aos manuais didáticos, porém não há um debate crítico sobre a associação entre a pré-história e a vida contemporânea dos indígenas brasileiros, o que transparece, mesmo que implicitamente, que diversas etnias indígenas ainda vivem na dita idade sem escrita, a pergunta é por que?
ResponderExcluirÁlvaro Ribeiro Regiani
Olá ! A visão e a historia eurocêntrica estão fortemente presentes nos conteúdos históricos escolares, além disso os professores praticam suas aulas dentro de horizontes bem definidos em termos historiográficos. Se restam duvidas o episodio da BNCC e da tentativa da mudança da hegemonia europeia ressonam ate hoje! Pergunto renato oque você ache que podemos fazer para mudar esse quadro? Parabéns pelo texto.
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