Ane Luise Silva Mecenas Santos


“UM VEHICULO DE CONHECIMENTOS ESPECIAES”: A HISTÓRIA ENSINADA NO PARECER



Ensinar história para crianças e suas implicações. Essa questão foi amplamente analisada ao longo parecer da comissão da instrução pública sobre o projeto de reforma do ensino primário. As inquietações perpassaram questões como a concepção de história ensinada e sua funcionalidade para a formação de crianças e jovens, o momento no qual a referida disciplina escolar deveria ser ministrada e o método de ensino. Todas essas questões foram analisadas a partir do cotejo com experiências de ensino vigentes em outros contextos temporais e, principalmente, em outros países. Alias, a explicitação das propostas de ensino de países da Europa e da América foi o tom predominante ao longo do parecer, demonstrando uma ampla sintonia entre os embates educacionais no Império do Brasil e o de outras nações.

A primeira questão problematizada é atinente ao papel da disciplina história no âmbito escolar. A história ensinada foi apresentada como uma disciplina que teria como mote a formação moral dos alunos, no intuito de cultivar os sentimentos e as faculdades. De acordo com o parecer:

"Do mesmo modo, porém, como a admissão das sciencias physicas e naturaes no plano da escola tem muito menos por fim ensinal-a sciencia, do que dispor o espirito para ella, assim as lições de História o hão de enveredar, não tanto como um vehiculo de conhecimentos Especiaes, quanto como um meio util de cultura para os sentimentos e as faculdades nascentes do menino" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 204)

“Um meio útil de cultura”. Essa era a finalidade apontada para a disciplina história no âmbito escolar. Na concepção defendida pelos integrantes da comissão, a história escolar não tinha como eixo formador a elucidação dos grandes episódios e as narrativas dos fatos, com a elucidação de conhecimentos espaciais, mas a formação cultural do aluno. Essa dimensão cultura perpassava pelo reconhecimento da diversidade de experiências históricas em diferentes espacialidades e temporalidades. O parecer também elucidava contrapontos históricos entre povos tidos como civilizados sobrepondo “selvagens e bárbaros”.

"Tocando a geographia, designará, numa grande esphera, os paizes habitados ou aridos, a Polynesia selvagem, a America onde a gente que emigra da Europa, succede ao gentio, que vae desapparecendo, o oriente, cheio de monumentose povos antigos, a China civilizada e solitaria, a Africa com os seus negros, os seus arabes, os seus desertos. Os typos de homens, os monumentos, o aspecto pincturesco das regiões serão exhibidos mediante imagens, photographias, livros, objectos caracteristicos de toda a natureza" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 206).

Pautado na experiência de ensino de História na Bélgica, o parecer explicita como o ensino da disciplina deveria elucidar uma lógica similar a um passeio pelo mundo tido como civilizado e bárbaro, no intuito de expressar a diversidade cultural e, principalmente, racial. Para o professor caberia dizer “que todos os outros povos têm cada qual tambem a sua historia, os seus livros, os seus objectos antigos” (BARBOSA, ESPÍNDOLA, VIANNA, 1883, p. 206). A história ensinada perpassava pela elucidação das fontes, da cultura material, dos vestígios deixados por cada sociedade.

O uso de documentos no ensino de história dialogava com a proposta metodológica de ensino defendida no parecer, pautada no método intuitivo, que partia do conhecido para o desconhecido, do palpável para o abstrato. Em relação à história ensinada, a preocupação em educar partindo do concreto para o abstrato pode ser ilustrado por meio da discussão sobre raça.

O modelo de exposição sobre as raças elucida duas vertentes que deveriam predominar no ensino de História. A primeira consiste na busca de elementos próximos à realidade do aluno, tornando questões conceituais próximas do vivido. Questões complexas como a concepção de raça humana deveria ser norteada com o uso de paralelos, em âmbito comparativo, como a variedade de raças caninas. Partindo da observação da realidade animal, inferia-se o estímulo para se pensar a mesma questão atinente ao universo humano, em uma duração histórica. A segunda questão que perpassava pelo ensino era a ênfase em partir do conhecido para o desconhecido.

Em relação à história, isso implicava na defesa de utilizar os exemplos das sociedades contemporâneas, caso atuais para elucidar similaridades com o passado. A concepção de continuidade era um elemento importante na aprendizagem histórica dos discentes. Todavia, ainda no tocante ao método de ensino, enfatizava-se a articulação entre história e geografia, disciplinas que tinham uma dimensão moral e patriótica.
História e Geografia deveriam ser ensinadas nas escolas de forma articulada. Mas a enunciação também revela outras dimensões sobre a disciplina história: o que deveria ser ensinado. Os conteúdos históricos deveriam partir do conhecido para o desconhecido, tanto em âmbito temporal, quanto espacial. Partia-se da história local, para a nacional, até atingir a universal. Temporalmente, privilegiava-se o período contemporâneo, tido como ponto de partida e, em menor escala, o moderno. Eram as duas temporalidades que deveriam nortear os programas escolares de história. Essa ênfase nos períodos recentes era justificada pela finalidade atribuída à disciplina, de “preparar o cidadão para julgar as necessidades de sua época”. Essa assertiva explicita um combate ao modelo de ensino enciclopedista e erudito, com ênfase em uma proposta mais pragmática.
A história deveria ser ensinada sob o método de anedotas, com a explanação sobre a trajetória biográfica ou de episódios tidos como relevantes e exemplares para a formação moral dos alunos. Essa dimensão da história como mestra da vida e instrumento de formação moral da população não era exclusiva dos integrantes da comissão de instrução pública da Câmara dos deputados. Pelo contrário, era uma concepção compartilhada entre os principais intelectuais que pensavam a história no Brasil oitocentista, incluindo prestigiados homens de letras vinculados ao IHGB (GUIMARÃES, 1988).
O parecer elucida uma preocupação com a eficiência do ensino de história, no intuito de possibilitar uma prática tida como racional e profícua, na construção cultural do aluno. Para isso, foram apontadas ressalvas atinentes à práxis pedagógica da disciplina, com recomendações para evitar aulas que fossem consideradas mecânicas, pautados exclusivamente na memorização de livros e repetição de lições. A intuição e as anedotas deveriam sobrepor às lições. Seguindo essas diretrizes, o ensino da história era entendido como salutar e necessário para o ensino primário, pois,

"Entendido simplesmente assim, este ensino tem por seguro a sua funcção necessaria entre as materias da escola. Entretanto, a sua adequação a esta esphera de intelligencias é sumamente delicada, e encerra em si as maiores difficuldades. Por certo, si fosse tão facil, quanto parece afigurar-se a um, aliás notável escriptor contemporaneo, ‘o indicar aos alumnos, sob o accumulo de factos e nomes, a sua significação moral e o seu alcance historico, mostrando no presente a progenitura do passado e o progenitor do futuro’, não se póda contestar que a historia mereceria occupar um dos primeiros lagares, entre os assumptos da instrucção primaria" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 204).

Ao longo da segunda metade do século XIX uma das inquietações que perpassavam a história como disciplina escolar era em relação ao momento no qual as crianças deveriam iniciar os estudos históricos. A validade do ensino da história era incontestável, quando se pensava no ensino secundário e superior. Ao se referir ao ensino primário, porém, a pertinência da presença da história não soava de modo uníssono, em decorrência de sua complexidade e, principalmente, por ter como objeto as experiências humanas de tempos pretéritos, ou seja, uma realidade não palpável e que exigia do aluno considerável poder de abstração.

"Ora, esta disposição imprescindivel mal começa aos 14, ou 15 annos de idade. Até então o ensino da historia é ou mui nescio, tal qual nos livrinhos que sabemos, ou mui ridiculo, si arma a um alvo superior. Em ambos os casos é improfficuo, emquanto á cultura de qualquer das faculdades da creança, sobre ser pernicioso, si fór enfadonho e pernicioso ainda, si prematuramente concitar paixões" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 204).

O método de ensino da história na instrução primária foi apresentado de forma hierárquica, demonstrando a prioridade em tornar o aluno o sujeito ativo na construção da aprendizagem. Tudo deveria partir da investigação do aluno, por meio dos vestígios históricos. Era a forma encontrada para manter o colorido e naturalidade do ensino. em segundo plano, emergia a expressão oral dos professores, com historietas, anedotas que chamassem a atenção dos alunos. A palavra do mestre deveria apresentar-se como preleções que despertassem a contemplação das biografias que pudessem ser vistas como exemplos dignos de serem seguidos. Por fim, vinham os manuais escolares, tão propalados no âmbito do ensino secundário, mas tidos como ineficientes no ensino primário. Sobre as preleções o documento expressa:

"Fallae aos vossos alumnos, fallae-Ihes muito, fallae-Ihes sempre (...). Narrae, narrae ainda, os grandes faclos da nossa historia nacional; e, si vos sonberdes haver, todos ouvidos e olhos os vossos pequeninos ouvintes bebei-os-hão com avidez; suas almas juvenis imbuir-se-hão d'elles, ficando-lhe a lembrança profundamente gravada na memoria. Os pormenores poderão desvanecer-se; mas o essencial, o capital, o bello principalmente, o grande, o nobre, o accessivel á intelligencia e á imitação dos discípulos, isso em que, portanto, insistireis especialmente, subsistirá intacto, influindo generosos sentimentos e, o que ainda mais vale generosas acções. No começo, só a lição oral é practicavel. Mas não é unicamente nas classes inferiores que a lição oral tem a sua rasão de ser. Menor não é, talvez, a sua necessidade nas classes medias e superiores. Ja então o alumno sabe ler; póde apprender de cór; convêm, é, até, preciso que o faça, que se exerça em voar com as proprias azas" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 208).

As preleções deveriam ser uma prática exclusiva para o ensino de história no ensino primário, mas também deveriam ser exercidas no ensino secundário e superior. A lição oral era vista como um método capaz de gerar sentimentos e ações, assim como estimular a aprendizagem para levar o aluno a voar com as próprias asas. No ensino primário, a narração deveria apresentar uma sequência preestabelecida.

"Narrae primeiramente os factos: animae os vossos personagens; commnnicae a tudo o atractivo e o interesse da palavra; depois, quando, outrosim, houverdes envolvido no vosso colloquio, á maneira de Sócrates, as vossas caras creanças, quando as tiverdes feito falar sua vez, remettei-as então ao livro" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 208).

A narrativa deveria ser pautada na apresentação dos fatos e personagens, de modo que as crianças fossem envolvidas pela trama histórica. O enredo deveria ser atrativo e adequado ao método intuitivo. A defesa do método também perpassou pela descrição do modelo de ensino vigente e considerado ineficaz:

"Leccionar, pois, a historia pela ordem da sua successão natural; fallar ás creanças em epochas remotas; pretender inicial-as de começo nos factos da antiguidade; tornar por ponto de partida o berço do gênero humano, como tem procedido até hoje os que asseguram á lenda biblica o monopolio dos estudos históricos na escola, é tão absurdo, quanto pretender conhecer os varios paizes, as varias nações, as varias raças que dividem o globo, antes de haver observado a raça a que pertencemos, a nação de que somos membros, a nossa terra natal" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 205).

Igualmente, isso não implicava na metodologia de uma história ilustrativa. Pelo contrário, a proposta de ensino proposta no parecer revela uma concepção de história ensinada pautada na investigação e no criterioso uso das fontes históricas e da construção conceitual da disciplina pelo próprio aluno. De acordo com o parecer:

"O sentimento da realidade na historia póde, para o menino, derivar da idéa da historia delle mesmo. Está nas mãos do professor induzil-o a pesquizar os factos da sua vida pessoal, levando-o a entender o modo como esse passado é o que constitue a historia. Do mestre depende o impressionar-lhe a imaginação com a idéa de perquirir as origens de sua familia, a datas e os logares do nascimento e obito dos seus ascendentes, a profissões delles, os casos da sua vida, seus talentos, seus haveres, etc. A creança interrogará os paes. Lerá, e comparará certidões do registro civil. Possue talvez o pae documentos, objectos provenientes de longe, de que o menino buscará inferir as suas conclusões. Procurará meio de informar-se e cogitará nas fontes, donde poderiam derivar as informações que necessita. Póde-se contar ás creanças a historia da escola: seus fundadores, sua construcção, sua inauguração, seus planos; teve tres classes, depois quatro, mais tarde sete, para adeante dez; mostrar os papeis que consignam esses factos, discutir a sua authenticidade" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 205).

Os procedimentos propostos para o ensino da história coadunavam com os passos da pesquisa histórica vigente na segunda metade do século XX, como o levantamento documental e a critica dos testemunhos. Em certa medida, a história escolar até extrapolava a dimensão de investigação acadêmica, pois no ensino os professores deveriam estimular os alunos a buscarem informações com pais, com o uso da tradição oral como vestígio sobre a vida dos alunos. O parecer preconizava para que o docente “Excitará o alumno a interrogar os anciãos. Dará por tarefa o recolherem informações, (...). O menino verificará que com os successos antigos recresce a difficuldade. E ouvirá contemporaneos, que narrem por ouvir, sem ter visto” (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 205).

A proposta sobre o ensino de história perpassava pelo uso de diferentes tipologias documentais, como pergaminhos, monumentos públicos, mapas, tradição oral, livros e o próprio espaço urbano. Além disso, havia a recomendação para que o professor estimulasse o cotejo das fontes, no intuito de possibilitar a crítica dos testemunhos. Tratava-se de um ensino com caráter investigativo e pouco propenso à memorização. O trato documental foi comparado aos recursos utilizados em outras disciplinas escolares:

"Começará a historia pelo aspecto exterior e nomes dos seus materiaes, como se começa a historia natural colleccionando borbolêtas. Ninguem, ao parecer, reflectiu ainda em que os verdadeiros elementos da historia não consistem no facto de referir historias, mas na acquisição de noções elementares acerca dos documentos e da maneira de apurol-os. E, todavia, não podemos reunir idéas a respeito do que seja a historia, senão proporcionalmente ás que possuimos a respeito do que sejam os documentos. Em fallecendo estas noções a historia gera a fé, e prepara homem de fé; mas não produz a sciencia, nem forma homens dispostos para a sciencia. É tendo em mira a sciencia, e não a fé, que se ha de solicitar a imaginação das creança" (BARBOSA; ESPÍNDOLA; VIANNA, 1883, p. 206).

O documento apresenta a história ensinada em dualidade entre os preceitos religiosos, acríticos e edificadores da fé, e os prodígios da ciência na formação de homens críticos e capazes de usar a imaginação. A história, pautada em anedotas e análise de testemunhos era vista como um instrumento para fomentar o fortalecimento do espirito científico no Brasil.

Referências

 Ane Luíse Silva Mecenas Santos - Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2017)
BARBOSA, Ruy. Impugnação dos embargos do Ceará pelo Rio Grande do Norte. Natal: Sebo Vermelho, [1908] 2013.


ESPÍNDOLA, Thomaz do Bomfim. Geografia Alagoana, ou Descrição Física, Política e Histórica da Província das Alagoas. Maceió: O Liberal, 1871.

ESPÍNDOLA, Thomaz do Bomfim. Geografia Física, Política, Histórica e Administrativa da Província de Alagoas. Maceió: Tipografia do Jornal de Maceió, 1860.

ESPÍNDOLA, Thomaz do Bomfim. Descrição das Viagens do Dr. José Bento Cunha Figueiredo Júnior ao Interior da Província de Alagoas, Maceió, 1870; 

ESPÍNDOLA, Thomaz do Bomfim. Viagem do Presidente da Província Francisco de Carvalho Soares Brandão a Povoação de Piranhas e Paulo Afonso. Maceió, 1878; 

ESPÍNDOLA, Thomaz do Bomfim. Elementos de Geografia e Cosmografia Oferecidas à Mocidade Alagoana pelo Dr. T. do Bonfim Espíndola. Maceió: Tipografia da Gazeta de Notícias, 1874.




Um comentário:

  1. Olá, gostaria de saber sua posição acerca da relação entre a aprendizagem do conhecimento científico, historiográfico ensinado nas escolas e o conhecimento social e cultural de nossas crianças?

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